Observatorio de Geopolitica
O Observatório de Geopolítica do GGN tem como propósito analisar, de uma perspectiva crítica, a conjuntura internacional e os principais movimentos do Sistemas Mundial Moderno. Partimos do entendimento que o Sistema Internacional a por profundas transformações estruturais, de caráter secular. E à partir desta compreensão se direcionam nossas contribuições no campo das Relações Internacionais, da Economia Política Internacional e da Geopolítica.

África: crítica à dimensão da dependência europeia,por Claudia de Borba Maciel

Algumas elites confiaram demais na contribuição externa e na ajuda ao desenvolvimento, e negligenciaram o esforço interno.

A África pelos africanos: uma crítica à dimensão econômica da dependência europeia

por Claudia de Borba Maciel

A dependência histórica da África em relação à Europa é o tema do mais recente livro de Carlos Lopes, economista nascido na Guiné-Bissau, que foi Secretário Executivo da Comissão Econômica das Nações Unidas para a África de 2012 a 2016, e é atual professor da Universidade de Cape Town, na África do Sul, e da Sciences Po, em Paris.

Intitulado “A armadilha da autoilusão: explorando as dimensões econômicas da dependência e da caridade nas relações África-Europa”, o extenso e bem documentado estudo analisa as causas desta relação persistentemente desequilibrada e apresenta sugestões para romper o círculo vicioso da ajuda externa e do endividamento. Lopes propõe um novo paradigma, no qual a África assuma a responsabilidade pelo próprio desenvolvimento.

Lopes situa a herança histórica da armadilha na exploração colonial dos recursos minerais e agrícolas africanos, ao longo dos séculos XIX e XX, apoiada em falácias da old-fashioned teoria das vantagens comparativas, que acabou tornando o continente dependente dos mercados e indústrias europeus. Depois das independências nacionais, e sobretudo nas décadas de 1980 e 1990, a crise da dívida lançou países africanos nos braços das instituições financeiras internacionais, que aram a exigir a aplicação de programas de ajuste estrutural, conduzindo a restrições econômicas e ao aumento da pobreza.

Como ex-representante da União Africana (UA) em negociações comerciais com a União Europeia (UE), Carlos Lopes ajudou a levar o debate sobre a integração e a industrialização da África à Agenda 2063 da Comissão da UA. Encontrou, entretanto, ceticismo por parte dos negociadores europeus devido a sua defesa de uma abordagem unificada da integração econômica e das críticas à “fantasia” do livre comércio, que mascara o nefasto processo de fuga de capital do Sul Global para os países mais ricos.

Para o economista bissau-guineense, a ênfase na concessão de preferências comerciais no âmbito do acordo da UE com o grupo A (África, Caribe e Pacífico), assinado em Lomé, em 1975, e renovado em Cotonou, em 2000, constituiu uma abordagem fragmentada e excludente, tendente à “balcanização” da África. O Magrebe não fazia parte deste arranjo, que tampouco poderia coexistir com iniciativas como a Zona de Livre Comércio Continental Africana (ZCLCA), criada em 2018.

Faltavam a compreensão profunda da heterogeneidade e complexidade de um conjunto diversificado de realidades e a consideração de tópicos como o à propriedade intelectual, instrumentos de política industrial e investimentos produtivos.

Ademais, segundo Lopes, a Comissão da UE e os seus membros mais influentes muitas vezes lançavam unilateralmente instrumentos e atividades, sem consulta ou aviso prévio aos interlocutores africanos. Foi o que ocorreu com a proposta “Global Gateway”, anunciada em 2022, poucos dias antes de uma Cúpula UE-UA, como uma reação ao Belt and Road chinês no setor de infraestrutura. Diante de mudanças de prioridades ao longo do caminho, a elaboração de estratégias negociadoras por parte da África ficou prejudicada, e os resultados acabaram por frustrar as expectativas dos dois lados.

Em sua obra anterior, “Mudança estrutural em África”, o diagnóstico de Carlos Lopes sobre as barreiras à transformação econômica apontava em particular para o fracasso das prescrições padronizadas de políticas públicas para o continente africano. O economista considera que os parceiros internacionais devem aceitar uma mudança de políticas prescritivas e paternalistas, de ambição excessiva, para objetivos realistas e compartilhados.

Elemento essencial é o o barato aos capitais, prejudicado pelo viés negativo das empresas de classificação de risco, que ignoram o valor potencial representado pela população numerosa, os ativos ambientais e as oportunidades da transição tecnológica disponíveis na África. Lopes argumenta que, em termos de valor do PIB, países africanos são os que menos contraem empréstimos internacionais, apesar de serem os que deles mais precisam.

Reconhece, por outro lado, que algumas elites confiaram demais na contribuição externa e na ajuda ao desenvolvimento, em particular das organizações internacionais, e negligenciaram o esforço interno.

Lopes aponta, assim, a necessidade de os próprios dirigentes africanos investirem em uma nova pauta, que contemple os seguintes elementos:

a) diversificação de suas economias, para reduzir a dependência dos produtos primários, promover agregação de valor e desenvolver a indústria do conhecimento;

b) prioridade à educação, saúde e capacitação, de forma a qualificar a força de trabalho, criar empregos e melhorar a produtividade;

c) construção de instituições estáveis, incluindo uma burocracia eficiente, um poder judiciário independente e uma sociedade civil atuante.

Do ponto de vista coletivo, a África deve desenvolver instituições financeiras regionais fortes, capazes de financiar projetos de infra-estrutura e industrialização em condições favoráveis, reduzindo a dependência externa.

A Europa, por sua vez, deveria mudar o foco da prestação de ajuda para o investimento produtivo, por meio de parcerias público-privadas, projetos de infraestrutura e apoio às empresas africanas. Seria crucial garantir preço justo às exportações africanas e evitar barreiras ao comércio sob justificativas ambientais, o que ajudaria a aumentar a disponibilidade de capitais.

A União Europeia poderia igualmente apoiar iniciativas de integração econômica africana, como a ZCLCA, e trabalhar com as instituições financeiras internacionais para proporcionar alívio da dívida externa, de forma a criar espaço fiscal para a implementação de políticas públicas de redução da pobreza e das desigualdades definidas pelos próprios atores nacionais.

O interessante capítulo sobre migrações desmistifica as premissas que orientam as políticas europeias em relação à África e aponta a juventude africana como peça-chave para a sobrevivência europeia no médio prazo.

Lopes contextualiza a necessidade aggiornamento da cooperação europeia com a África à luz da influência da China, hoje o maior parceiro comercial bilateral, que se diferencia pela maior adaptabilidade aos contextos locais. Extremamente completo, o livro de Lopes se beneficiaria, entretanto de maior, aprofundamento no exame deste contraste, assim como da presença de parceiros asiáticos e árabes, como Rússia, Turquia, Índia, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita.

De minha parte, lembro que, na 9a. edição do Fórum Econômico China-África, realizado no início de setembro, o presidente Xi Jiping anunciou a abertura unilateral, com tarifa zero, de 100% das linhas tarifárias chinesas aos países menos desenvolvidos, entre os quais 33 africanos e todos os lusófonos do continente, a partir de 2025.

Oriundas de experiência radicalmente diversa, como economista africano, funcionário internacional e scholar de prestígio, as ideias de Carlos Lopes convergem com as propostas de reforma do sistema de governança defendidas pelo presidente Lula nas Nações Unidas e no G-20, as quais ainda enfrentam grande resistência dos interlocutores mais poderosos.

Claudia de Borba Maciel, atual embaixadora do Brasil na Guiné-Bissau

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