Observatorio de Geopolitica
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Crise política e disputa ideológica na África II: um olhar a partir de Moçambique, por Marílio Wane

Moçambique e Angola possuem regimes políticos semelhantes por conta dos seus percursos históricos recentes cheios de paralelismos

Angola – Divulgação Turismo

Crise política e disputa ideológica na África II: um olhar a partir de Moçambique

por Marílio Wane

No dia 13 de março, um episódio relativamente pouco noticiado, porém, de grande significado para as relações internacionais, movimentou o cenário político africano, especialmente na região mais ao sul do continente. Trata-se do incidente diplomático provocado pelo governo de Angola, ao impedir a entrada de políticos oriundos de diferentes países – incluindo ex-presidentes e outras altas lideranças – que viajaram  para participar de um seminário sobre democracia no continente. Ao desembarcar no aeroporto de Luanda, foram retidos por algumas horas sem qualquer assistência ou justificação oficial, tendo sido alguns deles compelidos a retornar aos seus países de origem. Embora o seminário tenha decorrido normalmente dias depois, o episódio gerou uma onda de indignação por parte dos envolvidos, abrindo espaço para o questionamento do caráter democrático do governo e regime político locais. Tal questionamento tornou-se particularmente grave por ter ocorrido no mesmo dia em que Angola ou a exercer a presidência rotativa da União Africana, prevista para um período de um ano.

Dentre os líderes africanos, destacou-se a presença de Ian Khama, ex-presidente do Botswana e de Venâncio Mondlane, candidato derrotado nas últimas eleições presidenciais de Moçambique, entre outros. Quanto a este último, a proibição da sua entrada chamou bastante a atenção devido ao papel de contestação política que tem desempenhado em seu país, que é um dos mais importantes aliados históricos do regime angolano. De fato, desde a divulgação dos resultados eleitorais em outubro de 2024, Mondlane tem liderado movimentos de protesto face à vitória (alegadamente fraudada) do partido no poder, resultando numa situação de grande instabilidade social até os dias atuais. De outras regiões do globo, destacaram-se as presenças dos sul-americanos Andres Pastrana, ex-presidente da Colômbia e Leopoldo Lopez, líder da oposição venezuelana, para além de alguns políticos norte-americanos e europeus.

Juntamente com representantes da sociedade civil, estas e outras figuras foram a Angola a convite da UNITA, o principal partido de oposição ao MPLA, que governa o país desde a independência, em 1975. Já o evento em si, denominado O Futuro da Democracia em África visava debater formas de promover “uma maior abertura e responsabilidade democrática face ao crescente autoritarismo” e, apesar do incidente, decorreu entre os dias 14 a 16, na cidade de Benguela. Foi organizado pela Fundação Brenthurst, em coordenação com a IDC – Internacional Democrata Centrista, presidida por Pastrana. Ambas as organizações integram a Plataforma dos Democratas Africanos (PAD, na sigla em inglês), recém-criada, apresentando-se como um think tank de “debate e discussão sobre como defender, avançar e proteger os ideais democráticos em África”.

O que nos diz este episódio?

Para além da sua clara dimensão internacionalista, o evento reflete um aspecto importante do ambiente político contemporâneo em África: o crescente questionamento da hegemonia dos regimes políticos instalados desde as independências, entre as décadas de 1950 e 1970. Um pouco por todo o continente e consoante as variações locais, os regimes políticos vigentes são formados pelos grupos políticos que antes lideraram os movimentos de libertação do colonialismo europeu, ou a eles ligados. Em boa parte dos casos, tais grupos consolidaram a sua hegemonia através da instrumentalização do aparelho de estado a seu favor, via de regra, distanciando-se dos ideais de emancipação presentes na sua origem. Uma vez atingidos os principais objetivos da sua formação – a independência e a construção da nação – tais movimentos, transmutados em partidos políticos, teriam se desvirtuado e se transformado em organizações unicamente interessadas na sua própria manutenção no poder.

Neste sentido, o sintoma mais evidente deste cenário é a extrema precariedade das condições de vida da esmagadora maioria da população, que tem vindo a se agravar progressivamente. Como resultado, as populações e sociedade civil africanas tem demonstrado alto grau de descontentamento não apenas com a situação concreta, mas igualmente pela falta de acolhimento das suas demandas por parte dos seus governos e instituições públicas. Tal estado de coisas abre espaço para a busca de soluções e alternativas de melhoria de vida para fora dos condicionamentos impostos pelos regimes políticos. É o caso, por exemplo, das organizações da sociedade civil, que em grande parte do continente são financiadas sobretudo pela União Europeia e os Estados Unidos. E isto as coloca num dilema: por um lado, acabam por representar agendas de interesses externos ao país, mas por outro lado, é a única maneira viável que encontram como espaço de intervenção pública num ambiente político predominantemente hostil.

O evento de Luanda e a crise dele decorrente exemplificam oportunamente o cenário atual da disputa ideológica contemporânea em África, na medida em que os seus organizadores pretendem “capturar” este sentimento de descontentamento. Este foi o terceiro do gênero, tendo outros dois decorrido em Cabo Verde e em Marrocos, desde que o PAD foi criado em 2023, o que demonstra a emergência de um movimento político-ideológico em construção. Neste sentido, o incidente com Ian Khama adquiriu grande carga simbólica, em função das últimas eleições no Botswana que se caracterizaram pela transição pacífica, fora dos padrões do continente. Efetivamente, o seu partido (BDP, do qual veio a sair recentemente) governou o país ininterruptamente durante 66 anos, desde a independência do domínio colonial britânico, em 1958. De tal maneira que a atitude do governo angolano pode refletir o temor de um “mau exemplo” na região, com um agravante: duas semanas antes, Khama encontrou-se com Venâncio Mondlane, líder da oposição em Moçambique. Daí também o presumível incômodo com a sua presença no evento, uma vez que há uma preocupação com o risco de contágio da situação de Moçambique em relação às próximas eleições presidenciais em Angola, a serem disputadas em 2027.

A batalha ideológica

Enfim, um exame mais detalhado a respeito desta iniciativa PAD permite identificar os seus interesses no continente, a partir espectro ideológico em que se enquadram os seus organizadores. Em primeiro lugar, a Fundação Brenthurst, criada em 2004 pela família Oppenheimer (ligada à indústria extrativa de diamantes no continente na África do Sul, sediada em Joanesburgo), apresenta-se como uma entidade promotora de “estratégias e políticas para reforçar o desempenho económico de África e permitir um desenvolvimento inclusivo e sustentável”. Em sua página oficial na Internet, constam artigos críticos ao governo sul-africano (do histórico ANC de Nelson Mandela, no poder desde 1994) e elogiosos ao governo de Donald Trump nos EUA, bastante sugestivos num momento em que os dois países vivem uma crise diplomática sem precedentes. Para além disso, a Fundação presta serviços de consultoria para o DA (Democratic Alliance), o partido da minoria branca de oposição liberal, que recuperou significativamente a sua força política nas últimas eleições, em maio de 2024.

A julgar pelas lideranças da instituição que, além de Pastrana, conta com figuras como Viktor Orbán (Hungria), Guilherme Lasso (Equador), José Maria Aznar (Espanha), a IDC mostra-se como uma organização inclinada ao espectro político da direita, até mesmo na sua versão mais extrema. Dentre os participantes do evento, chamou a atenção também a presença do líder da oposição venezuelana, reforçando o alinhamento ideológico “anti-esquerda” da reunião. Em suma, sob o argumento da promoção da democracia em África, tanto a Fundação Brenthurst quanto a IDC procuram exercer influência nos rumos políticos do continente, integrando diversos países a uma rede global de alianças estratégicas à direita. Com o perdão da simplificação, pode-se interpretar tal movimento como um tentáculo do “Ocidente” sobre áreas do chamado Sul Global bastante propensos à influência dos BRICS, no âmbito da disputa ideológica em um mundo multipolar.

Moçambique e Angola possuem regimes políticos semelhantes por conta dos seus percursos históricos recentes cheios de paralelismos, sobretudo por conta da hegemonia dos partidos fundadores (Frelimo e MPLA, respetivamente) há exatos cinquenta anos. Entretanto, a despeito do abandono da ideologia socialista presente na sua origem, muitos ainda os veem erroneamente como forças políticas de “esquerda”. Este equívoco recorrente tem levado a que certos setores da opinião pública caracterizem os atuais movimentos africanos de contestação política como novas formas de “revolução colorida”. Sob este ponto de vista, o caso moçambicano seria um exemplo típico por combinar aspectos tais como o fato de Mondlane ser pastor evangélico, o uso massivo das redes sociais para mobilização das massas e até mesmo o “anti-comunismo” presente no seu discurso, como arma de combate ideológico contra a Frelimo (e a todo ideário a ela historicamente associado).

Contudo, embora plausível, esta visão peca por ignorar as dinâmicas políticas e sociais internas da sociedade moçambicana como a causa fundamental da atual crise pós-eleitoral. Se é bem verdade que, em grande medida, os países africanos interagem com o resto de mundo a partir de relações de dependência e subalternidade impostas a partir de fora, é igualmente verdadeiro que muitos dos governos beneficiam-se delas, em detrimento do desenvolvimento das suas próprias nações. Ao fim do dia, trata-se da velha visão paternalista sobre as sociedades africanas, amplamente difundida e acompanhada de largas doses de desinformação e preconceito. Em contraposição, nada melhor que o recurso às especificidades próprias da perspectiva africana sobre os embates ideológicos contemporâneos, capazes de contribuir para uma melhor compreensão de diversos fenômenos sociais a nível global.

Marílio Wane – Mestre em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da Bahia e pesquisador na área de patrimônio cultural em Moçambique

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