Manuel Domingos Neto
Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza em 1949. Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, mestre pela Universidade de Paris III e Doutor em História pela mesma universidade, em 1979. Professor da Universidade Federal do Ceará e professor associado da Universidade Federal Fluminense

Berlinda alongada, por Manuel Domingos Neto

Efetivamente, viveremos sob o ramerrão do intervencionismo militar enquanto a autoridade política não se sobrepor ao quartel.

Reprodução – Ascom STF

Berlinda alongada

por Manuel Domingos Neto

Diz-se do julgamento de oficiais pelo STF: “isso nunca aconteceu antes”; “pela primeira vez, generais golpistas estão presos”…

O que representam esses “ineditismos”? Para onde isso nos levará?

No julgamento, poucos elementos do esquema golpista figuram no banco dos réus. A ideia de “ineditismo” é relativizada caso se considere que, tal como no ado, grandes atores da trama criminosa, inclusive seus mentores intelectuais, ficarão isentos de responsabilidades.

Apreciações sobre o julgamento compreendem ainda exclamações sobre a “burrice”, a “ignorância”, o “despreparo”, a “brutalidade”, a “covardia” e o “cinismo” dos réus.

É hilariante ver valentões acuados, baixando a voz, gaguejando, tropeçando nas palavras, embaralhando o raciocínio, cometendo atos falhos, exibindo tiques nervosos, apelando para justificativas ridículas, oferecendo argumentos para a acusação…

Quando o juiz explica que os acusados não precisam se ater à verdade, imagino risadas de Shakespeare no plenário.

Como esperar dignidade de canalhas presunçosos? Como esperar imividade de espertalhões contumazes cientes de que serão condenados?

Não razão para esperar compostura diante do destroçar da aura de poderosos conferida por galões, insígnias, posturas, ritos e gestos marciais.

Daí para ilações equivocadas é um pulo. Muitos am a caracterizar os fardados como burros, ignorantes, despreparados, desonestos, interesseiros e covardes.

Não é justo, nem frutífero, nem inteligente desclassificar o soldado. Por que agastar-lhe o amor-próprio e exacerba seu espírito de corpo? O que a democracia ganha com isso?

Nos quartéis, só os mais inteligentes e habilidosos fazem carreira. Desonestos, covardes e ambiciosos sem escrúpulos constituem minoria. A maioria é composta de pessoas dignas, sérias e preocupadas com o soldo.

As deformações nas fileiras são de outra ordem e estão fora do julgamento em curso.

Na raiz do golpismo endêmico está a atribuição constitucional de que, às Forças Armadas, cumpre a defesa de uma entidade abstrata designada pátria.

Assim, tudo e qualquer coisa pode ser percebido como missão do militar, inclusive a traição aos interesses dos brasileiros.

Talvez a condenação dos golpistas desestimule aventuras autoritárias. Talvez. Mas a condenação dos réus e a degradação da imagem das fileiras não eliminarão noções de superioridade inculcadas no cotidiano dos quartéis por meio de apostilas, de palavras-de-ordem, do cancioneiro e de discursos em efemérides.

O fundamental seria o controle da autonomia corporativa pelo poder político, tema sempre minimizado.

Comandantes devem zelar pela imagem de suas fileiras com empenho igual ao que precisam devotar à preservação da hierarquia e à disciplina. Sem a confiança e o respeito da sociedade, as tropas estarão sempre frágeis.

O principal responsável pela imagem das Forças Armadas deveria ser o chefe de Estado, a quem cumpre exercer o comando supremo.

Entretanto, a exacerbação da autonomia corporativa ao ponto de o militar reclamar para si o papel de criador da nação (ou seja, da sociedade), dilui essa responsabilidade.

Enquanto a Força Terrestre declarar-se “Exército de Caxias” (ou seja, de um oficial que alicerçou sua carreira eliminando brasileiros insurretos), não haverá comunhão espiritual entre a sociedade e o quartel.

Nenhuma autoridade pode ser efetivamente exercida sobre autodesignados representantes dos pais da pátria.

Não houve, no Brasil republicano, chefe de Estado, incluindo Getúlio e os generais-ditadores, que tenha exercido de fato o comando supremo das fileiras.

A comparação de quadros históricos é sempre problemática, mas é razoável estabelecer que as fileiras nunca viveram desgaste tão prolongado.

A berlinda em curso resulta da busca de protagonismo político iniciada após a vitória eleitoral de tendências reformistas reunidas em torno de Lula, lá se vão mais de duas décadas.

O ativismo político de chefes militares ganhou plena visibilidade há cerca dez anos, quando o comandante do Exército deu sinal verde para o início da campanha eleitoral de Bolsonaro em unidade militar. Não sendo demitido e preso, logo em seguida, coagiria o STF para que encarcerasse Lula.

Desde então, o conjunto do aparelho militar foi engolfado em processo político medonho, lastreado pelos milhões de militantes que compõem a “família militar”. Consequentemente, ou a ser objeto de críticas desgastantes, acirradas após o inacreditável 8 de janeiro de 2023.

Hoje, o capitão Bolsonaro e alguns oficiais respondem na Justiça por crime contra a ordem democrática. Alguns podem até ser expulsos com desonra, prolongando-se o repertório de “ineditismos”.

Aliás, há chefes militares torcendo por isso. Muitos brasileiros ariam que os tumultos vividos nos últimos anos seriam obras de poucos.

Mas, efetivamente, viveremos sob o ramerrão do intervencionismo militar enquanto a autoridade política não se sobrepor ao quartel.

Precisamos de uma reforma militar orientada por uma nova concepção de Defesa Nacional.

O mundo está explosivo, precisamos defender o Brasil. a da hora de uma Conferência de Defesa Nacional que aponte para a mudança do Artigo 142 da Constituição.

Esse é o primeiro o para que os fardados saiam da berlinda sem fim e o chefe de Estado assuma, finalmente, o Comando Supremo.

Manuel Domingos Neto nasceu em Fortaleza em 1949. Graduou-se em História pela Universidade de Paris VI, em 1976. Obteve o título de Mestre em Sociedade e Economia na América Latina, pela Universidade de Paris III, em 1976, e o título de Doutor em História pela mesma universidade, em 1979. Foi pesquisador da Casa de Rui Barbosa, superintendente da Fundação Centro de Pesquisas Econômicas e Sociais do Piauí, estado pelo qual também foi deputado federal. Professor da Universidade Federal do Ceará e professor associado da Universidade Federal Fluminense, foi também vice-presidente do CNPq e presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).

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