A noite que deixou tudo muito estranho, por Mauro Donato

Livro de ficção aborda as jornadas de junho, período que alterou a rota do país, derrubando uma presidente e criando a figura de Jair

A noite que deixou tudo muito estranho, por Mauro Donato

A noite de 13 de junho de 2013 é um marco na história do país. Um protesto contra o aumento da tarifa do transporte público sofreu uma repressão maior do que a de hábito, e tudo virou de cabeça para baixo. Os vinte centavos até então ridicularizados pelas classes dominantes frente à quantia ínfima, da noite para o dia foram majorados pela imprensa como pretexto para conspurcar o governo federal da época. Os tais vinte centavos que são considerados por boa parte da esquerda como o ovo da serpente que derrubou Dilma Rousseff e desaguou em Jair Bolsonaro.

Ocorre que à época, muito além do reajuste em São Paulo, diversos movimentos contrários à realização da Copa do Mundo e sua gentrificação já estavam em estado avançado de convocação popular em vários estados. Inúmeras frentes de luta por moradia estavam de punhos cerrados contra os despejos pelas reintegrações de posse injustas e desumanas. Grêmios estudantis estavam fazendo o trabalho de base contra a contínua precarização do sistema público de educação. Movimentos negros mantinham a luta diária contra o racismo estrutural brasileiro desde a Lei Áurea. Feministas se mobilizavam pelo direito ao aborto. Comunidades cariocas denunciavam as UPPs assassinas.

Ocorre também que as polícias já praticavam detenções absurdamente arbitrárias, abusivas, infringindo o direito constitucional de protestar, e vinham reprimindo toda sorte de manifestação com a violência costumeira. Tudo ignorado pela imprensa conivente. Até que naquele 13 de junho de 2013, a PM de Geraldo Alckmin decidiu aloprar e atacou indiscriminadamente manifestantes, pedestres, motoristas, senhoras de idade, jornalistas independentes, e… os profissionais da grande imprensa. Daí doeu na própria pele.

Os grandes jornais paulistas que haviam exigido mão firme do estado e repressão violenta, aram a enaltecer não a demanda pela revogação do aumento, mas o povo nas ruas, o ato em si mesmo. Então foi vista aquela avalanche de cartazes contra tudo que há de errado na via láctea.

O problema dessa história toda está na crença de que foi ali que a direita saiu do armário e sequestrou as tais Jornadas de Junho. Não foi. A direita já estava nas ruas há um bom tempo. Antes mesmo da fatídica noite, as pautas conservadoras, moralistas, fundamentadas na pauta dos costumes, já vinham colocando cerca de 40 vezes mais gente nas ruas do que os protestos de cunho redistributivo e socialista, temas de esquerda (fonte: BEP/Cebrap, cujos números são esmiuçados no livro “Treze”, de Angela Alonso, Cia das Letras). Em 2011, Damares Alves era uma figura completamente fora do radar político da esquerda. Naquele ano, ela venceu um prêmio cuja audiência atingiu os 5 milhões de espectadores pela internet e a Frente Parlamentar Evangélica demonstrava não estar para brincadeira, só para ficarmos em um exemplo.

Como é sabido, uma bituca de cigarro só incendeia uma pradaria inteira se a pradaria oferecer condições para isso. Diversos fatos históricos tiveram sua ignição com uma fagulha que seria desprezível, inócua em outro momento qualquer. O Maio de 1968 na França começou com estudantes exigindo o fim da separação entre homens e mulheres nos alojamentos da Universidade de Nanterre. Deu no que deu. Um protesto contra as péssimas condições de higiene do restaurante popular Calabouço, no Rio de Janeiro, resultou na morte de um estudante pela polícia e foi a faísca no rastilho de pólvora que culminou no AI-5 e o recrudescimento da ditadura brasileira.

A catarse do pós 13 de junho de 2013 juntou todos os movimentos sociais organizados, mas levou também às ruas o estrato popular desorganizado – porém variado – composto de ricos e pobres, homens e mulheres, coxinhas e punks, brancos e negros. E é esse caldo desorganizado que confirma a frase de Friedrich Engels: “O homem que desconhece a classe a qual pertence, age contra si próprio”. O caldo despolitizado que acredita no armamentismo civil como modelo de segurança, na existência da ameaça comunista, na corrupção como sendo uma doença endêmica da esfera política e na benevolência do patronato.

O que ocorreu dali em diante é de conhecimento de todos. Uma articulação de frente ampla catapultou Dilma desavergonhadamente, as reformas neoliberais avançaram em ritmo acelerado e a mídia corporativista não desistiu do propósito de macular e enterrar o PT para sempre. Mas foi naquele átimo histórico, entre os dias 13 e 20 de junho, quando muitos imaginaram estar defronte a um ponto de inflexão nacional, que pessoas tão diferentes interagiram pacificamente no espaço público.

Assim se dá o encontro dos personagens de “O mais estranho nisso tudo” (Editora Patuá), romance político que retrata o mosaico constituído pela chamada mídia-livre, pelos coletivos autonomistas e de periferia, e pelos representantes dos estratos médios e altos da sociedade, moradores de bairros nobres, que repelem a “gente diferenciada” pobre e negra. O fugaz período de sintonia dá lugar, pouco tempo depois, às dissonâncias enraizadas na sociedade brasileira e às consequências proporcionais – e cotidianas – a cada um deles.

O romance “O mais estranho nisso tudo” não tem a pretensão de explicar o período chamado de Jornadas de Junho. Primeira e obviamente por tratar-se de ficção (baseada em fatos observados e vivenciados no ofício da profissão por este jornalista que vos escreve). Em segundo lugar, porque há bons livros de não-ficção sobre o tema. Finalmente, porque o “grande acordo, com o supremo, com tudo”, deu concretude aos anseios das elites que, de tempos em tempos, encenam uma reviravolta fajuta em consonância com a famosa fala do príncipe de Falconeri no romance “O leopardo”, de Tomaso di Lampedusa: “Tudo deve mudar para que tudo fique como está”. Assim, a elite econômica permanece no topo da pirâmide, a polícia continua atendendo aos mandos do capital e o trabalhador é explorado por tempo indeterminado. Tudo como dantes no quartel de Abrantes. É disso que trata o livro.

Serviço:

“O mais estranho nisso tudo”, de Mauro Donato – 248 págs. Editora Patuá, 2023.

Minibio:

Mauro Donato é escritor e jornalista, pós-graduando em Literatura e Filosofia (PUC-RS). Vencedor do Prêmio de Literatura da Universidade de Fortaleza 2023 na categoria Contos, é autor de “Além do Pó” (Ed. Chiado) e “O Mais Estranho Nisso Tudo” (Ed. Patuá). Colaborador em veículos progressistas, também escreve ensaios críticos na RFM, publicação científica interdisciplinar da Universidade Estadual Paulista (UNESP) em parceria com o IBEC (Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos).

Sinopse:

“Três personagens têm seus destinos cruzados no já histórico ano de 2013 e, como consequência dos dias turbulentos, têm suas vidas profundamente alteradas.

As chamadas Jornadas de Junho, que começaram com uma demanda popular específica, mas que encontraram campo fértil para colocar em debate a qualidade dos serviços públicos, a falácia da democracia que ainda traz penduricalhos da ditadura militar nas leis e no Código Penal, a falta de o da população trabalhadora aos centros urbanos quando não se está a serviço, o racismo nosso de cada dia, a precarização da escola pública, o direito à moradia, a questionável necessidade da realização de uma Copa do Mundo. Um imenso barril de pólvora que tinha diversas razões justas, legítimas, cuja firmeza nas reivindicações obrigou – veja só – o grupo Globo a reconhecer em editorial, 50 anos depois, seu apoio ao regime militar.

Um levante que, no entanto, pela dimensão e extensão, deixou de ser um aparente ponto de inflexão nacional para desaguar em um esgoto indesejado alguns anos depois. O período de grandes convulsões nas ruas testa as convicções de Alexandre e a resiliência de Luísa e de Kleber.

Alexandre, jovem publicitário, pertencente à classe média despolitizada e preconceituosa, que nunca vivenciara a realidade das balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo;

Luísa, fotógrafa freelancer que vive a euforia da mídia alternativa com o advento do streaming ao vivo que desmascara os sofismas dos grandes meios de comunicação após décadas de noticiários deliberadamente enganosos e servis ao capital;

Kleber, um anarquista da periferia, descrente do sistema político e portador de uma verborragia anti-imperialista, anti-latifundiária, anti-burguesia, e contrário à realização da Copa do Mundo no país cujo aparato policial atua de maneira distinta conforme a cor da pele da pessoa abordada, cujo modus operandi na periferia é um, nos bairros nobres é outro.

O reencontro desses três personagens, anos depois, reflete a fragmentada estrutura social de um país cujas disfunções e desigualdades seguem normalizadas.”

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected]. O artigo será publicado se atender aos critérios do Jornal GGN.

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1 Comentário

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  1. Narrativa perfeita, mas … incompleta…

    Falta o óbvio e ululante.

    Nenhum movimento dessa magnitude, e com os objetivos pautados, tem sucesso nestas paragens meridionais sem a chancela da mão que balança todos os golpes e berços:

    Os EUA.

    Claro que, como diz o texto, o incêndio da pradaria requer que esteja seca.

    E naquele caso, de 2013, os motivos eram muito mais que combustíveis….

    Reversão do regime de exploração do petróleo, supressão de direitos trabalhistas, previdenciários e etc, estancamento da queda dos juros, que com Dilma chegaram a 2%, avanço da indústria bélica nacional (consórcio Odebrecht / Marinha), etc, etc, etc.

    Havia uma indicação inédita de união e estabilidade do Mercosul, que também teria que ser destruída, como foi.

    Peru, Equador, Bolívia, Brasil e Argentina foram varridos por ondas de lawfare, cujo laboratório foi ensaiado bem antes, com Zelaya em Honduras e Lugo no Paraguai.

    Reduzir 2013 ao nosso quintal é, como disse Engels, desconhecer sua classe e agir contra si.

    Neste caso, a classe de país que somos.

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