Daniel Afonso da Silva
Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de "Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas". [email protected]

Saudades de Talleyrand, por Daniel Afonso da Silva

No plano geral, a posição norte-americana sobre a Ucrânia virou inequívoca desde o sucesso eleitoral de Trump.

Saudades de Talleyrand

por Daniel Afonso da Silva

          A sequência Trump/Zelensky desta sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025, na Casa Branca, exasperou o mundo inteiro. O mandatário ucraniano adentro a zona de conforto do presidente norte-americano imaginando dirigir-se a algum de seus correligionários em Kiev, Bruxelas ou Paris.

Impressionantemente cheio de si, ele abriu a conversação desferindo toda sorte de aleivosias ao encontro de seu arqui-inimigo Vlir Putin, presidente russo. Fez isso como se não tivesse tomado ciência da doutrina Trump para Ucrânia. Como se fizesse ouvidos moucos à exposição do secretário de defesa norte-americano, Pete Hegseth, em Bruxelas semanas atrás com os detalhes dessa doutrina. Ou pior, como se ignorasse a firmeza da manifestação do vice-presidente J. D. Vence, em Munique, acentuando os imperativos para o fim contencioso euroasiático.

Seria simplesmente curioso se não fosse trágico.

Tão logo assumiu novamente a presidência, Donald J. Trump sinalizou a sua harmonização com o presidente russo. Mas, para além disso, muito concretamente, refez as contas do apoio financeiro dos Estados Unidos para Kiev e despachou seu secretário do tesouro para rever faturas com Zelensky. Zelensky, por sua vez, ignorou a presença – e sobretudo as intenções – do enviado de Trump na Eurásia. Isso nas semanas que sucederam a entronização do 20 de janeiro de 2025.

Menos Trump e mais J. D. Vence acompanhou essa agem ucraniana com muita atenção e reou o conteúdo a Trump. Que, por sua vez, prometeu a si mesmo jamais dirigir a palavra a Zelensky. E essa era a sua convicção até o domingo 23 de fevereiro de 2025. Uma convicção que foi sutilmente alterada pelo clamor do presidente francês, Emmanuel Macron, que, em visita aos Estados Unidos, ou bons momentos com Trump e conseguiu convencê-lo a receber o presidente ucraniano.

Trump, então, aquiescendo aos reclamos de Macron, mudou parcialmente de ideia. Aceitou receber Zelensky. Mas ao seu modo. A portas abertas, com a presença de J. D. Vence e com a imprensa acreditada na Casa Branca podendo registrar ao vivo.

Como resultado: uma implacável humilhação televisionada. Que causa embaraço compreender como Zelensky permitiu-se.

No plano geral, a posição norte-americana sobre a Ucrânia virou inequívoca desde o sucesso eleitoral de Trump. Após a sua posse, Trump virou porta-voz dos interesses de Putin. Todos sabem disso. E Zelensky mais que ninguém.

Para agravar a situação, na qualidade de presidente ucraniano, Zelensky atravessara o Atlântico para explicitamente apoiar Kamala Harris contra Trump ao longo das presidenciais norte-americanas. Sinceramente deixou de ser possível entender se ele fizera isso por inocência, incompetência ou inconsequência.

adas as eleições, Zelensky simulou esquecer.

Mas Trump nem Vence esqueceram.

Tanto que foi glacial a interação entre Trump e Zelensky em Paris, por ocasião da reabertura da Catedral Notre-Dame de Paris, em dezembro de 2024, após as eleições norte-americanas de novembro.

Trump e Zelensky se entreolharam. Mas não se viram.

Macron fez de tudo para aproximá-los.

Mas a memória de Trump impediu. Tornando, ali, o seu desprezo por Zelensky algo pessoal.

Mas, mais que isso, desde a confirmação de seu retorno à Casa Branca, Trump despachou emissários para Moscou para que retornassem a Washington com soluções para o dossiê russo-ucraniano. O que fizeram e traduziram em quatro convicções.

  1. As fronteiras ucranianas jamais recuarão ao que eram em 2014.
  2. O apoio bélico de Washington vai diminuir até acabar.
  3. O ingresso da Ucrânia na Otan virou quimera.
  4. E o destino da União Europeia vai depender de sua reação a esses imperativos da doutrina Trump/Putin para a solução do contencioso.

Zelensky sempre foi cônscio de tudo isso. E, por isso, vira inacreditável que ele tenha ido à Casa Branca acreditando-se maioral. Querendo impor a sua verdade para um público cativo e contrário. Transitando por campo minado. E, mesmo assim, jogando para a torcida e esperneando em busca de alguma atenção.

Trump e Vence – antevendo a cena – apresentaram palavras de ordem longamente meditadas. Parte para agradar a gente dos Estados Unidos mesmo. Parte, a gente da Rússia.

Sucesso integral para Trump.

Zelensky talvez mirasse no exemplo de Macron.

Macron estivera em Washington no início da semana e simulou desconcertar Trump. Mas, por maior que seja a entropia sa atual, a França, vis-à-vis dos Estados Unidos, continua sendo França. Em memória, história e verdade. O que leva Trump a mirar Macron, lembrar-se do general De Gaulle de braço com François Mitterrand e também Jacques Chirac. Trump ainda dispõe de uma certa ideia da França. E, com isso, algum respeito.

Com Zelensky inexiste paralelo similar.

Em contrário, existe apenas desprezo.

Sentimento que guiou a integralidade da sequência vista no Salão Oval na sexta-feira, 28 de fevereiro de 2025.

Esse encontro Trump/Zelensky no Salão Oval projetava a de um acordo bifronte para 1. o cessar-fogo e 2. o avanço norte-americanos pelas terras raras ucranianas. Era isso.

Então, presidentes a postos e imprensa também, o primeiro questionamento ao líder ucraniano foi relativamente extemporâneo e desconcertante. Um jornalista acreditado à Casa Branca – e, seguramente, também, ao trumpismo – “denunciou” a falta de compostura nas vestimentas de Zelensky. Em alusão bem direta, observou que, talvez, não seja totalmente elegante e respeitoso adentrar a Casa Branca sem terno. Como reação, Zelensky manteve-se em silêncio. Mas o golpe foi certeiro. Afinal, o seu traje tem pouco que ver com a emblemática jaqueta do Evo Morales ou com as fardas impecavelmente bem cortadas de Fidel.

Diante desse mal-estar, a conversa poderia ter acabado bem aí. No começo. Mas Trump quis-se dono da cena. E deu cordas para a conversação. E Zelensky avançou. Avançou inocentemente. Pois uma leitura abrangente do body language de Trump era o suficiente para abdicar da reunião. Trump não queria conversar. Menos ainda negociar. Queria impor.

E Zelensky pagou pra ver. E até dobrou a aposta. Quando J. D. Vence tomou a palavra e subiu ainda mais o tom. Mirando os olhos de Zelensky como fera sanguinária, ele lançou o presidente ucraniano a corner, nocauteado e sem condições de seguir. Tudo por afirmar que Zelensky era um ingrato com os Estados Unidos e com os locatários da Casa Branca.

Essa sequência fez sorrir o mundo inteiro. Notadamente a gente do Kremlin. Particularmente Putin. Sobretudo quando Trump afirmou que Zelensky não dispõe de “cartas para jogar”. Que é a convicção dos russos desde o início do conflito.

A sequência foi essa. Mas as suas razões são outras. Trump é indiferente a Ucrânia e mais ainda a Zelensky. Trump age olhando para Wall Street. E, em seus cálculos, a manutenção do conflito russo-ucraniano não é algo positivo para os negócios. Então, melhor, parar.

Simples assim.

Pois, fria e essencialmente, a grande estratégia norte-americana envolve encontrar mecanismos de conter a ascensão chinesa. E, para isso, uma aproximação com a Rússia pode ser importante. Visto que ela pode sutilmente afastar a Rússia dos caminhos chineses. Representando, mesmo que limitados, ganhos extraordinários aos norte-americanos.

Não há santos no serralho.

Trump dissimula apoiar a Rússia para neutralizar a relação da Rússia com a China. Trump quer as terras raras ucranianas para ampliar a sua capacidade física de contenção dos avanços tecnológicos chineses. Trump vê o One Belt, One Road chinês como um monstro, um mastodonte muito difícil de conter. Mas que precisa ser contido. E por razões existenciais.

De modo que ao receber a malfadada sequência Trump/Zelensky foi a simples e evidente demonstração que Trump joga outro jogo. Bem diferente do jogo de Zelensky e dos europeus. Trump joga xadrez. Zelensky, damas.

A obsessão de Trump é conter o monstro chinês. O desejo de Zelensky é acabar logo com um conflito indecente que já foi longe demais.

Como diria Edward Luttwack a propósito da istração norte-americana,por favor, saltemos das preliminares ao encontro do prato principal, que é a China”.

Dito de modo frontal, a grande questão norte-americana não é Kiev nem Moscou, mas Pequim e Shangai.

De modo que obsessão por Kiev não a de autoengano. Notadamente para os europeus.

Do contrário, veja-se.

Às vésperas de fevereiro de 2022, falava-se em “morte cerebral” da Otan para fustigar a criação de um sistema de defesa autonomamente europeu. Mas veio o fevereiro de 2022 e deu alta ao paciente. Que, bem ou mal, reabilitou o seu protagonismo. Que, agora, com o retorno de Trump à Casa Branca, voltou a esmaecer. E esmaeceu a ponto de o novo chanceler alemão, num gesto de extrema indiscrição diplomática, permitiu-se dizer que – pela primeira vez, desde a Carta do Atlântico de 1941 – europeus e norte-americanos deixaram de sonhar o mesmo sonho.

Um jornalista ou ativista apresentar avaliação como essa não faria espanto. Mas o chanceler de um dos principais países europeus jamais poderia dizer algo assim. E se disse, disse por não ter como não dizer que, ao fundo, a crise do Ocidente revela uma crise existencial na interação transatlântica entre Estados Unidos e Europa. Primeiro porque o consenso antinazista e antifascista de 1941 – que permitiu a chancela norte-americana para a aventura europeia após 1945 – claramente perdeu a valência e agoniza. Segundo porque os norte-americanos, por tudo isso, parecem ter deixado de reconhecer a solidariedade irrestrita aos europeus como um valor inegociável.

Mudaram-se os tempos, mudam-se os valores.

E Zelensky – por razões insondáveis – parece não perceber.

Com tudo isso, o fim da tensão russo-ucraniana anuncia-se ainda mais dramático após a altercação Trump/Zelensky da última sexta-feira. Não precisava ser assim. Realmente não precisava. E vai ficando evidente que mais de um milhão de valorosos cidadãos russos e ucranianos perderam as suas vidas nesse conflito que vai terminando com a sensação de não ter servido a nada.

Ao mesmo tempo, lideranças do mundo solidarizam com Zelensky após a inquestionável humilhação na Casa Branca. Zelensky faz-se, assim, confortado. Como quem, novamente, cumpriu o papel de fustigar o gigante. No caso, Trump e os norte-americanos.

Mas Trump e Putin, ao fundo, seguem às gargalhadas. Sabem, eles dois, que o jogo é bem outro. E num nível bem mais alto. E inatingível para indolentes. Onde a primeira lição envolve reler Tolstói. E a segunda, lembrar-se do mago da diplomacia chamado Talleyrand que sempre dizia coisas muito banais, mas universais, do tipo “jamais cutucais onças com varas curtas”.

Daniel Afonso da Silva é doutor em História Social pela Universidade de São Paulo e autor de “Muito além dos olhos azuis e outros escritos sobre relações internacionais contemporâneas”.

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2 Comentários

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  1. Por favor, alguém mande o texto para Lula, antes que ele repita, mais uma vez, esse suposto constrangimento com o tratamento dado ao palhaço ucraniano, e regurgite essas falas cansadas sobre “respeito e democracia”.

    Eu sei, sendo Lula e o Brasil o que são no tabuleiro geopolítico, ou seja, nada, não há muito o que dizer, senão essa missa fúnebre da “paz mundial e solidariedade entre os povos”.

    Mas tem hora que é melhor ficar quieto.

    Como bem escreveu o articulista, esses não é jogo para crianças.

    Tirem o Lula da sala, por favor.

  2. Daniel, tu nos trouxe a memória do grande André Araújo,que infelizmente nós deixou e que é sempre leitura obrigatória no sítio do GGN! Tenho certeza que lembrou dele nesse pertinente artigo? Bem por aí, mas ainda acho que Putin comanda esse espetáculo de horrores patrocinado por Trump! Abração.

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