Quarta carta ao Presidente Lula: uma escola (e um mundo) de sonhos, por Sebastião Nunes

Acabam de sair as pesquisas e a indefinição continua. Mesmo com mais de 80 anos, continuo na briga e amanhã votarei em Lula, pois é preciso expulsar os canalhas do poder.

Quarta carta ao Presidente Lula: uma escola (e um mundo) de sonhos

por Sebastião Nunes

            Senhor Presidente:

            Imaginar não custa nada e é no princípio dos governos que a imaginação voa solta em todas as direções. Depois, será preciso prender a imaginação no cabresto da realidade e amarrar os sonhos no mourão disponível na porta do armazém do viável.

            Em janeiro de 2023 estaremos no princípio do voo e nada nos custa soltar a pipa conforme sopra o vento dos acalantos. Mas vamos pular um ano, ou três, ou dez, pois não se constrói uma realidade nova num estalar de dedos.

            Na porta da casa de alvenaria caiada e de telhas novas, Joãozinho e Maria se despediram da mãe e entraram no ônibus que os levará, com dezenas de outras crianças, arrebanhadas nas cercanias, para a escola do povoado. Bem mais cedo o pai, munido de enxada e matula, partiu na direção da horta cultivada em comum com os vizinhos e irrigada com as cisternas que eles mesmos escavaram na terra dura por fora, mas rica de água a escassos metros de profundidade, graças a lençóis que má vontade e ganância ocultaram durante séculos.

             Seguiu pela estrada de terra socada o ônibus. Algum dia haverá asfalto, mas, por enquanto – não é mesmo? –, as prioridades são outras, como o amplo posto de saúde, pelo qual am, à entrada da vila.

            Enfim, a escola. Salta a molecada, de tênis barato e roupa limpa. Não é hora da merenda, é claro, mas as narinas já captam cheiros gostosos. As salas são alegres e arejadas, a professora veio no carrinho próprio (comprado à prestação) e já sorri e já se prontifica, diante do computador, a orientar uma pesquisa pelos jardins botânicos do mundo. Mas só um computador, para 20, 30 curiosidades infantis? Por enquanto. Dia virá em que cada um terá seu tablete fornecido de graça pelo governo. Quem esperou décadas pode esperar um pouco mais. E segue a primeira aula do dia e vem a segunda e depois o intervalo.

            A merenda não é o mais importante, mas é o mais importante. Afinal, tão bom quanto aprender é comer, as duas atividades se completam. O ovo veio do galinheiro que mãos infantis ajudaram a erguer. O feijão, do plantio consorciado com milho, como plantavam pais e avós desde sempre. O arroz, da várzea inundada, em que pés descalços atolaram no barro e braços mergulharam até o fundo para enterrar raízes úmidas. As verduras da horta e as frutas do pomar, que ali em se plantando tudo dá, não havendo ganância nem arrogância nem superioridades mesquinhas.

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E TUDO O QUE VEM DEPOIS

            Assim, devagar e sempre, se a do sonho à realidade. De todos conforme suas possibilidades, pois não dá para pedir a um aleijado que largue a muleta e bata o pênalti e marque o gol.

            Será muito difícil sonhar alto e imaginar que seja possível realizar os sonhos? Nem tanto. Basta querer, e boa vontade sem malícia é suficiente. Joãozinho contará piadas quando crescer e, no botequim, beberá com amigos a cerveja suada e merecida, a pinguinha ardendo na garganta e a linguiça tirando o gosto. A essa altura Maria estará na cidade cursando a faculdade que imaginou desde cedo.

            E assim o realismo socialista deixará de ser um grosseiro e uma escultura tosca para se tornar uma realidade cabocla, sertaneja, matuta.

            Primeiro ponto: o homem 100% bom não existe como não existe o 100% ruim. O homem (e a mulher) é um bicho como outro qualquer (cachorro, rato, abelha, tapir, muriçoca, cobra) cada qual com sua necessidade de sobrevivência, de morar e também de se multiplicar para manter a espécie, seja ela qual for. Se não houver conflito é muito melhor, não é mesmo?

            Segundo ponto: será preciso acabar com as cadeias e as polícias e os exércitos, e que cada comunidade decida o certo e o errado. Como? Não sei.

            Sempre haverá psiquiatras para consertar os 80, 65, 50, 25% de ruindade das pessoas tortuosas. Na maioria imensa, o desvio foi provocado por educação defeituosa em casa ou na rua. Cadeias darão ótimos hospitais e quartéis excelentes escolas.

            E assim seguiremos, Senhor Presidente: devagar e sempre.

            No fundo, sempre fui piegas e sentimental. Mas a pieguice não é um defeito nem o sentimentalismo qualidade ruim. São ambos, como tudo, pedaços de nós.

            Pode ser que, sem os absurdos contrastes que existem hoje, a vida se torne mais chata e menos imprevisível. Se, algum dia, o maior salário não for superior a dez vezes o menor, ótimo. Se os planos de saúde pagos acabarem e o SUS bastar, beleza.

            Para terminar, e já que estou com a mão na massa, que tal radicalizar um pouco mais? Então lá vai.

            Estados Unidos da América? Besteira. União Europeia? Bobagem. Todo país no mesmo balaio de gatos? Sim. Juntos e misturados. E vice-versa.

            Exatamente como imaginou Dom Quixote, o engenhoso fidalgo da esperança, para sempre sonhador e eternamente malogrado. Por enquanto.

Sebastião Nunes é um escritor, editor, artista gráfico e poeta brasileiro.

O texto não representa necessariamente a opinião do Jornal GGN. Concorda ou tem ponto de vista diferente? Mande seu artigo para [email protected].

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