O Código do Capital: a arquitetura invisível da dominação algorítmica global, por Reynaldo Aragon

Artigo revela como o capitalismo do século XXI se esconde por trás de interfaces suaves — e como planeja dominar o futuro sem que se perceba.

Jean-Michel Basquiat

O Código do Capital: a arquitetura invisível da dominação algorítmica global

por Reynaldo Aragon

Por trás do discurso da inovação e das promessas da inteligência artificial, um pequeno grupo de gestoras financeiras decide silenciosamente o destino das plataformas, dos algoritmos, da política e da própria democracia. Este artigo revela como o capitalismo do século XXI se esconde por trás de interfaces suaves — e como ele planeja dominar o futuro sem que você perceba.

A política das sombras.

No centro do debate contemporâneo sobre o poder das plataformas digitais, os holofotes se voltam quase sempre para nomes como Elon Musk, Mark Zuckerberg ou Sundar Pichai. Mas o que permanece nas sombras — e justamente por isso mais poderoso — é a arquitetura invisível que os sustenta. A pergunta que deveria guiar qualquer análise séria sobre o presente não é apenas quem comanda as Big Techs?, mas sim: quem financia, dirige e condiciona estruturalmente o que elas podem ou não fazer?

As respostas conduzem a um núcleo silencioso, transnacional, discreto e tecnicamente preciso: as grandes gestoras de ativos financeiros. Empresas como BlackRock, Vanguard, State Street, Fidelity e Amundi não apenas detêm participações significativas nas maiores plataformas tecnológicas do planeta. Elas impõem diretrizes, definem limites e orientam o desenvolvimento técnico, cultural e político de uma nova ordem mundial gerida por algoritmos e guiada por interesses financeiros.

Essa elite atua por meio do que Peter Phillips chamou de “Titãs do Capital”: um grupo de 117 diretores executivos que controlam mais de 50 trilhões de dólares em ativos globais, distribuídos em todos os setores estratégicos da economia, do armamento à vigilância digital, da indústria petrolífera à infraestrutura de inteligência artificial. Eles são, no sentido mais concreto da palavra, os donos do mundo. Mas não ocupam palácios nem cargos de governo. Preferem as salas de conselho, os comitês de auditoria, os fóruns técnicos internacionais e os canais silenciosos do lobbying financeiro.

Este artigo parte de uma premissa simples e radical: o atual estágio do capitalismo não é apenas uma fase avançada da financeirização, mas uma mutação estrutural do poder global. Trata-se de um tecnocapitalismo algorítmico, no qual os códigos que regem o comportamento das plataformas são subordinados à lógica dos ativos financeiros, e não à ética pública, ao interesse coletivo ou à soberania dos povos. O algoritmo, neste novo regime, não é apenas uma ferramenta: é um operador político a serviço do capital.

A seguir, desvendaremos como as gestoras de ativos se infiltraram no núcleo estratégico das Big Techs e como moldam, desde a base, os rumos do mundo digital. Vamos demonstrar como operam na técnica, na política, na cultura e na ideologia. E, por fim, defenderemos que qualquer projeto progressista do século XXI precisa enfrentar esse poder difuso, opaco e quase invisível, sob pena de lutar contra um inimigo que já modulou até os termos da resistência.

Quem são os “Titãs do Capital”?

Por trás da fachada pública das grandes corporações digitais, existe uma camada subterrânea de poder cuja existência ainda é ignorada pela maioria da população, e muitas vezes, até por analistas experientes. Peter Phillips, no livro Titans of Capital, nomeia esse poder: 117 executivos de elite que comandam as 10 maiores empresas de gestão de ativos do planeta. Eles são o centro da engrenagem do capitalismo global contemporâneo, os curadores invisíveis do presente e arquitetos do futuro.

Essas gestoras (BlackRock, Vanguard, State Street, Fidelity, JPMorgan, Capital Group, UBS, Amundi, Allianz e PIMCO) operam como concentradoras de capital pulverizado, reunindo bilhões de dólares de fundos de pensão, governos, bancos, fundos soberanos e indivíduos, e canalizando esses recursos para os setores que definem os rumos da humanidade. Elas não produzem chips, não desenvolvem redes sociais, não criam ferramentas de IA. Mas decidem quem fará isso, como fará e sob quais condições.

Juntas, essas dez entidades controlam mais de US$ 50 trilhões em ativos, o equivalente a quase metade do PIB mundial. Isso lhes confere o poder de decidir o destino de empresas inteiras, de vetar fusões, forçar mudanças em conselhos, reorientar investimentos e bloquear iniciativas que ameacem sua rentabilidade. O controle não é exercido por decreto, mas por “governança corporativa”: o voto por procuração em assembleias, a imposição de diretrizes ESG adaptadas ao capital, a pressão por maximização de dividendos, a seleção de executivos alinhados aos interesses dos fundos.

O mais impressionante é a conexão cruzada entre esses executivos. Eles se sentam simultaneamente em conselhos de grandes corporações, bancos, universidades, think tanks e instituições estatais, formando uma rede global de influência silenciosa e extremamente eficaz. Estão no Council on Foreign Relations, no Fórum Econômico Mundial, no Trilateral Commission, nos comitês de política monetária e nos bastidores da regulamentação internacional. São o “Estado-maior” do capital, não eleitos por ninguém, mas com poder para fazer ou desfazer governos inteiros, como se viu no colapso da Grécia, no impeachment de Dilma Rousseff ou nas políticas fiscais da América Latina nos anos 2000 e 2010.

Importa compreender que essas gestoras não são neutras nem ivas. Elas agem, deliberadamente, para preservar uma ordem de acumulação baseada na financeirização, na desregulação dos fluxos de capital e na naturalização de um mundo governado por algoritmos e plataformas corporativas. A cada voto emitido em nome de milhares de acionistas pulverizados, reforçam sua legitimidade técnica enquanto perpetuam a subordinação estrutural dos povos ao rentismo global. Esses são os Titãs do Capital. Não precisam dar entrevistas nem vencer eleições. Eles já venceram quando ninguém percebeu que eles existiam.

A captura das Big Techs pelas gestoras.

Se o século XX foi marcado por guerras geopolíticas travadas entre Estados-nação, o século XXI assiste à consolidação de outro tipo de guerra silenciosa, invisível e profundamente eficaz: a captura privada das infraestruturas digitais que organizam a vida social, econômica, política e afetiva do planeta. No centro desse processo estão as gestoras de ativos que, longe de serem meras investidoras, se tornaram operadoras centrais do novo regime de governança algorítmica global.

A dinâmica é simples e brutal: as gestoras adquirem participações acionárias significativas nas maiores empresas de tecnologia do planeta, Google (Alphabet), Microsoft, Apple, Amazon, Meta, Nvidia, Oracle, Palantir, entre outras. Não se trata de pequenas fatias especulativas. Em 2024, por exemplo, a BlackRock era o maior ou segundo maior acionista das cinco maiores Big Techs do mundo. Juntas, BlackRock, Vanguard e State Street controlavam cerca de 20% a 30% das ações em circulação das empresas do S&P 500, o que lhes conferia poder efetivo de veto, influência estratégica em conselhos e capacidade de definir prioridades internas.

Isso significa que, ainda que Mark Zuckerberg ou Elon Musk sejam as faces públicas de suas plataformas, as decisões centrais sobre algoritmos, moderação de conteúdo, inovação tecnológica e investimentos em inteligência artificial am, em última instância, pelo crivo dessas gestoras. São elas que decidem se a IA da Microsoft deve priorizar aplicações civis ou militares, se a Meta deve continuar investindo em realidades imersivas, ou se a Alphabet deve seguir adquirindo startups de biotecnologia e automação da linguagem.

Um exemplo ilustrativo é o da aliança estratégica entre a Microsoft e a OpenAI, cujo financiamento inicial e reestruturações foram aprovados com o beneplácito dos fundos institucionais que participam do board corporativo da Microsoft, entre eles, Vanguard e BlackRock. As decisões sobre o rumo da IA generativa, os modelos de linguagem como o ChatGPT, a forma como eles são treinados, auditados (ou não) e implementados, estão subordinadas ao cálculo de retorno sobre investimento definido por essas entidades.

A captura vai além da posse acionária. As gestoras exercem governança ativa, o que significa que:

  • participam das assembleias com poder de voto relevante;
  • pressionam publicamente por mudanças de estratégia quando os lucros estão em risco;
  • impõem critérios de compliance “aceitáveis ao mercado”, mesmo quando isso entra em choque com valores éticos ou direitos fundamentais.

Elas se posicionam inclusive em temas sensíveis como moderação de discurso de ódio, políticas de desinformação, contratos com agências de defesa e uso de dados pessoais. Sua lógica não é a da transparência democrática ou do interesse público — mas sim a da maximização de valor para os acionistas institucionais. Assim, a infraestrutura algorítmica da sociedade a a ser moldada não pela cidadania, mas pela engenharia financeira.

As Big Techs, nesse contexto, são mais do que empresas: são plataformas-operadoras de um projeto de dominação técnica, cognitiva e econômica, cujo back-end de comando está em Nova York, Londres e Frankfurt, não em Brasília, Buenos Aires ou Johannesburgo.

A governança da vida digital, portanto, não é um produto do Estado de Direito. É uma extensão da vontade do capital sob forma algorítmica, cujo núcleo decisório atende pelo nome de “asset under management”.

O lobby das gestoras contra a regulação.

Se as grandes gestoras de ativos já ocupam os conselhos de istração das maiores empresas de tecnologia do mundo, é no plano da política pública que elas revelam sua estratégia mais refinada: impedir que qualquer forma de regulação democrática ameace seus interesses estruturais. O lobby não é feito apenas por CEOs de Big Techs ou por associações empresariais do setor digital. Ele é articulado por uma elite financeira global que atua nos bastidores da política institucional, moldando marcos legais, vetando legislações e promovendo um arcabouço normativo funcional ao capital.

Na União Europeia, por exemplo, a tramitação da Digital Markets Act (DMA) e da AI Act foi alvo de intensa pressão por parte de fundos de investimento e conglomerados financeiros. A Associação de Mercados Financeiros da Europa (AFME), financiada por bancos e gestoras, atuou diretamente para suavizar os termos da legislação que buscava limitar o monopólio algorítmico das plataformas. Na prática, as gestoras financiam tanto as Big Techs quanto os lobistas que operam para manter as plataformas sob seu domínio ir.

Nos Estados Unidos, o cenário é ainda mais grave. A SEC (Securities and Exchange Commission), agência reguladora do mercado financeiro, vem sendo constantemente pressionada por representantes de Wall Street, entre eles, BlackRock e Vanguard, para bloquear qualquer medida que exija transparência nos algoritmos de IA utilizados em decisões de crédito, vigilância, ou moderação de conteúdo. Ao mesmo tempo, as mesmas empresas apoiam iniciativas como o Center for AI and Digital Policy, cujo discurso aparente é ético, mas cuja agenda prática é garantir um modelo de autorregulação centrado no interesse das corporações.

Na América Latina, esse processo assume formas ainda mais brutais. As gestoras atuam em consórcios de consultoria e advocacia, pressionando parlamentos e governos para flexibilizar leis de proteção de dados, impedir a criação de instâncias públicas de auditoria algorítmica e influenciar os termos dos projetos de lei sobre regulação de IA, como vem ocorrendo no Brasil. O caso mais visível foi a reação coordenada contra o PL das Fake News, que tentava responsabilizar plataformas por conteúdos nocivos e impulsionamentos ilegais. A campanha contra o PL foi financiada indiretamente por redes de fundações e escritórios com vínculos diretos com fundos de investimento e plataformas digitais.

O modelo de autorregulação que essas gestoras defendem não a de um eufemismo técnico para a blindagem da sua autoridade privada sobre a arquitetura digital global. Seu discurso é higienizado com palavras como “inovação”, “liberdade de expressão”, “livre mercado” e “eficiência técnica”, mas sua prática é de sabotagem ativa de qualquer tentativa de colocar a IA e os algoritmos sob controle público e democrático.

Essa lógica não opera apenas na política institucional. Ela invade universidades, laboratórios de pesquisa, editorias de jornalismo, redes de think tanks e consultorias estratégicas. Com isso, as gestoras não apenas dominam o capital e a tecnologia — dominam também o discurso sobre o que é aceitável pensar, propor ou implementar. Trata-se de um regime de hegemonia tecnocapitalista, onde o futuro é desenhado por cálculos de rentabilidade, e não por projetos de justiça social, redistribuição ou sustentabilidade real.

Enquanto isso, estados são rebaixados a entes regulados, e as democracias, ao invés de controlar o capital, am a ser controladas por ele — com o verniz da inovação e a aura da inevitabilidade tecnológica como escudo ideológico.

A nova arquitetura da dominação: técnica, política, cultura e ideologia.

A hegemonia das gestoras de ativos sobre as plataformas digitais não é apenas uma questão de governança empresarial. Ela representa uma mutação estrutural na forma como o poder opera no século XXI. Trata-se da consolidação de uma arquitetura de dominação sistêmica, que atravessa a técnica, a política, a cultura e a ideologia. Não estamos apenas diante de uma disputa por mercados, mas da instauração de um regime de comando algorítmico-financeiro global, onde a dominação se exerce de forma difusa, automatizada e profundamente naturalizada.

Técnica: a codificação do capital

A técnica, outrora campo da emancipação humana e do progresso coletivo, tornou-se instrumento de rentabilização automatizada do mundo. Os algoritmos que organizam os fluxos de informação, consumo, interação e desejo são construídos sob parâmetros definidos pelas gestoras: eficiência, escalabilidade, vigilância preditiva e retorno de investimento. Cada linha de código é, nesse contexto, uma expressão cifrada da lógica do capital.

O que deveria ser infraestrutura pública — como os sistemas de IA, os grandes modelos de linguagem, os buscadores, as redes sociais — tornou-se propriedade privada submetida à lógica dos ativos financeiros. A técnica, hoje, não é neutra nem autônoma. Ela é curada, modelada e distribuída sob os critérios impostos por gestores financeiros que sequer compreendem sua complexidade tecnológica, mas sabem perfeitamente onde ela deve chegar: no lucro trimestral e na manutenção da ordem global vigente.

Política: o rebaixamento do Estado.

A consequência inevitável dessa captura técnica é o rebaixamento do Estado a um agente regulado, e não mais regulador. O poder público, limitado por amarras fiscais, dívidas impagáveis e chantagens de investidores, é progressivamente excluído das decisões sobre o futuro digital de seus próprios cidadãos. Projetos de IA pública, de plataformas soberanas, de educação algorítmica crítica — todos naufragam sob o peso da “responsabilidade fiscal” e do “realismo de mercado”.

As decisões que afetam diretamente a democracia — como o que é permitido circular nas redes, o que será impulsionado, o que será ocultado — am a ser tomadas por conselhos privados, alinhados com os interesses dos grandes fundos. O poder político, nesse modelo, é substituído por um governamentalismo corporativo descentralizado, onde o algoritmo se torna norma e o compliance se torna Constituição.

  • Cultura: a modulação da subjetividade.

No plano da cultura, a dominação não se dá pela repressão, mas pela modulação de afetos, desejos e percepções. As plataformas, sob controle dos fundos, operam como máquinas de curadoria da experiência. Elas organizam o que vemos, como vemos, o que sentimos, com quem nos conectamos, o que lemos, quem ouvimos. As estruturas algorítmicas, formatadas para gerar engajamento e lucro, precarizam o tempo, colonizam a atenção e capturam a linguagem.

O resultado é uma cultura marcada pela ansiedade, pelo imediatismo, pela dopamina da recompensa digital, pela tribalização afetiva e pelo isolamento cognitivo. A nova ideologia não precisa convencer — ela basta. O algoritmo faz o trabalho ideológico sem precisar apelar à coerência. Ele oferece conforto, confirmação e pertencimento, enquanto reforça narrativas compatíveis com os valores do mercado.

  • Ideologia: o escudo moral da financeirização.

Para sustentar essa nova ordem, o sistema constrói um vocabulário de verniz moral: ESG, inovação, empreendedorismo, liberdade de expressão, transformação digital. São expressões que operam como significantes vazios, preenchidos conforme a necessidade do capital. A financeirização se disfarça de modernidade; a captura se apresenta como parceria público-privada; a dominação aparece como liberdade.

A tecnocracia do capital financeiro não se impõe pela violência direta, mas pela naturalização de sua inevitabilidade. Não há alternativas — apenas soluções “técnicas”. A política é substituída pela gestão. A democracia vira uma questão de design institucional. A dominação não precisa mais se justificar: ela se automatiza, se oculta no código, se dissolve na interface.

Com isso, estabelecemos que estamos diante de um novo tipo de poder — não apenas mais concentrado, mas mais opaco, mais inteligente, mais aderente à vida cotidiana. Um poder que atua no nível da infraestrutura, do código, da norma e do afeto. Um poder que não domina apenas corpos e territórios, mas mentes e futuros.

Sociedade 4.0 como campo de experimentação e alienação.

O mundo sob domínio das gestoras de ativos e das Big Techs não é apenas um sistema eficiente de istração de lucros. Ele é, sobretudo, um laboratório global de experimentação sobre a vida humana, onde o social é convertido em dado, o comportamento em métrica, o desejo em padrão previsível — e o sujeito, em consumidor perpétuo. A chamada Sociedade 4.0, que muitos celebram como a era da disrupção tecnológica, é, na prática, o campo de teste do tecnocapitalismo financeiro em sua forma mais avançada.

  • A subjetividade como infraestrutura explorável.

Nas redes sociais, em apps de entrega, em plataformas de streaming, no metaverso e nos modelos de IA generativa, a vida cotidiana é transformada em fluxo contínuo de dados. Tudo é registrado, analisado, interpretado e reconfigurado para retroalimentar os sistemas que, por sua vez, nos modulam de volta. Trata-se de uma alienação de novo tipo: não mais aquela em que o trabalhador se separa do produto de seu trabalho, como no século XIX, mas aquela em que o sujeito se separa de si mesmo — e se vê apenas como estatística, perfil ou KPI.

O trabalhador da economia de plataforma não apenas vende sua força de trabalho. Ele vende sua disponibilidade constante, sua atenção, sua localização, seu tempo morto, sua linguagem e sua imagem. O usuário, por sua vez, ao aceitar os termos de uso, consente com a extração daquilo que tem de mais íntimo: padrões de pensamento, ritmo de sono, preferências inconscientes, conexões emocionais. A subjetividade se torna infraestrutura explorável, e a alienação se torna natural, divertida e interativa.

  • O capitalismo como sistema de captura cognitiva.

Não se trata apenas de controle — trata-se de captura cognitiva e emocional em tempo real. As ferramentas de recomendação, personalização, ranqueamento e predição reorganizam o que podemos pensar, desejar e imaginar. Essa captura não é violenta, mas sedutora. Não é imposta, mas consentida. E não depende mais de ideologia tradicional: ela opera por design, por arquitetura informacional, por UX/UI, por gamificação da vida.

Como resultado, o mundo aparece aos sujeitos não como estrutura histórica, mas como interface — fluida, responsiva, moldável. A crítica se torna ruído, e o conflito se torna bug. A política é substituída por engajamento. O debate vira polêmica. O dissenso vira dissonância cognitiva. A forma social do capitalismo digital é a forma do like.

  • O experimento invisível: corpos, algoritmos e controle.

O que está em curso é um experimento civilizacional conduzido por conglomerados privados, com chancela das gestoras. Não há consentimento informado, nem garantias democráticas. O campo de testes somos nós. Cada scroll, cada clique, cada hesitação é contabilizada. Cada emoção, monitorada. Cada comportamento, modelado.

Em países do Sul Global — como o Brasil — essa experimentação adquire contornos ainda mais perversos. Plataformas são testadas em contextos de desigualdade estrutural, racismo algorítmico, ausência de regulação e hiperprecarização do trabalho. O que se naturaliza aqui vira padrão global amanhã. Somos a zona cinzenta da inovação, o corpo-território da dominação inteligente.

A financeirização das plataformas, nesse cenário, não é apenas um problema econômico. É uma questão de soberania ontológica. O que está em disputa é o que somos, o que podemos ser, o que nos constitui como humanos num mundo de dados, metas e interfaces.

No laboratório do capital algorítmico, a alienação não é a exceção — é o método. A dominação não é percebida — é incorporada. E a resistência, para ser possível, precisará começar com a reconquista da consciência sobre o que está sendo feito conosco, sem que saibamos, enquanto clicamos, deslizamos e reagimos.

A crítica como ato de soberania.

Diante de um sistema tão sofisticado de dominação — onde o poder financeiro captura a técnica, governa a política, modula a cultura e silencia a ideologia — resta perguntar: como resistir a algo que já pensa por nós, que já fala por nós, que já sonha por nós? A resposta, ainda que árdua, começa com o que Antonio Gramsci chamou de “pessimismo da razão e otimismo da vontade”: é preciso recuperar a crítica como ferramenta de soberania.

A crítica aqui não é um exercício acadêmico ou retórico. Ela é um ato radical de desnaturalização, de desmontagem do discurso técnico que se vende como neutro, do algoritmo que se apresenta como inevitável, da inovação que se mascara como destino. Como ensinou Lukács, a alienação só se desfaz quando o sujeito se reconhece como sujeito histórico, capaz de compreender a totalidade das relações que o constituem.

E nesse esforço, é indispensável politizar a técnica. A IA não é neutra. A arquitetura de uma plataforma não é neutra. Os filtros, os sistemas de recomendação, os parâmetros de moderação, os contratos de trabalho, as APIs, os datasets — tudo é político. Cada decisão técnica carrega uma disputa de classe, uma correlação de forças, uma concepção de mundo.

Por isso, propor uma regulação das plataformas e da IA que seja apenas “ética” ou “responsável” não basta. Precisamos de um projeto político de soberania digital, baseado em:

  • transparência radical dos algoritmos e das cadeias de comando corporativas;
  • auditoria pública, com participação cidadã e supervisão acadêmica;
  • plataformas públicas interoperáveis, sem fins lucrativos;
  • ruptura com a financeirização das infraestruturas informacionais;
  • leis antitruste e tributação real dos conglomerados tecnológicos e fundos de investimento;
  • investimento massivo em educação crítica, ciência pública e infraestrutura estatal de dados e inteligência.

Trata-se, portanto, de recuperar o poder político sobre o que hoje é comandado pelo capital financeiro sem rosto. De reverter o atual quadro onde a democracia é apenas uma casca institucional, enquanto a realidade é governada por interfaces controladas por quem jamais foi eleito — os mesmos que, como bem lembrou Peter Phillips, sentam-se nos conselhos da Amazon, da Raytheon e do Fórum Econômico Mundial ao mesmo tempo.

Romper com a hegemonia das gestoras de ativos sobre a técnica, a linguagem e o desejo não é um detalhe — é a condição para qualquer projeto emancipatório no século XXI.

Não haverá justiça social se não houver justiça algorítmica. Não haverá democracia se os códigos que nos governam forem escritos por e para a rentabilidade dos fundos. Essa crítica é, pois, um ato inaugural de insubmissão. É ela que abre o caminho para a reconstrução do comum. É ela que desafia a crença na inevitabilidade tecnológica. É ela que nos devolve o direito de hesitar — e, com isso, o direito de lutar.

Conclusão – Desmascarar os donos do algoritmo.

Vivemos sob o domínio de um poder sem rosto, que não envia tanques às ruas nem censura jornais, mas comanda o mundo por meio de planilhas, algoritmos, decisões de concelho e relatórios trimestrais. Este poder não veste farda nem ocupa tribunas — ele veste terno, fala em nome da racionalidade dos mercados e opera por trás dos códigos que definem o que é possível ver, dizer, sentir e pensar. Seu nome, muitas vezes ignorado, é gestora de ativos.

Enquanto nos distraímos com os delírios messiânicos de bilionários digitais ou com as batalhas teatrais da política institucional, as gestoras como BlackRock, Vanguard, State Street e seus pares constroem, silenciosamente, as fundações do que será o mundo nos próximos cinquenta anos. E o fazem a partir de um projeto de dominação técnica, política e afetiva que, para além de explorar, busca reorganizar o próprio tecido da realidade em nome da acumulação de capital.

Desmascarar esse poder é o primeiro o para enfrentá-lo. É preciso nomear os donos do algoritmo, os engenheiros da alienação, os gestores da desigualdade digital. É preciso romper com a fantasia de neutralidade técnica e com a farsa da autorregulação, e reconhecer que a disputa pelo futuro é, antes de tudo, uma disputa pelo comando da técnica e pela soberania do comum.

Num mundo onde a política é hackeada por modelos de linguagem, onde a cultura é modulada por métricas de engajamento, e onde o trabalho é precarizado por plataformas que respondem a fundos de investimento, a resistência começa com a recusa em aceitar o algoritmo como destino.

A democracia que se quer viva no século XXI terá que enfrentar não apenas o autoritarismo tradicional, mas o totalitarismo financeiro codificado, o domínio das infraestruturas por agentes invisíveis, a colonialidade do dado, a engenharia do comportamento e a naturalização da alienação. A tarefa é imensa — mas não há emancipação possível que não a enfrente.

Porque no fim, a liberdade não será um produto da inteligência artificial. Será sempre o resultado da consciência crítica organizada contra a dominação. E para que essa consciência se torne prática histórica, o primeiro o é esse: revelar quem são, onde estão e como operam os verdadeiros donos do mundo digital.

Reynaldo Aragon é jornalista especializado em geopolítica da informação e da tecnologia, com foco nas relações entre tecnologia, cognição e comportamento. É pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos em Comunicação, Cognição e Computação (NEECCC – INCT DSI) e integra o Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Disputas e Soberania Informacional (INCT DSI), onde investiga os impactos da tecnopolítica sobre os processos cognitivos e as dinâmicas sociais no Sul Global.

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1 Comentário

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  1. Em outras palavras, o Capitalismo é, de fato, o único totalitarismo que já existiu sobre a face da terra; e está, pelo visto indefinidamente, operante sobre a humanidade desde sempre. Apenas está, e a partir da Revolução Industrial, paulatinamente, aumentando seu poder e a extensão de seu domínio – o que foi potencializado, exponencialmente, pelo Algoritmo. A tecnologia é uma espécie de mecanização de um sistema de poder já existente, o que alterou, desmedidamente, a velocidade e intensidade desse processo. A diferença que eu posso observar, aqui de meu modesto nicho, é que, ao o que os totalitarismos, reais ou imaginários, dentro do modelo delineado pela Sra. Arendt – que só tinha olhos para o regime nazista e o regime soviético, e para quem o regime capitalista era um ponto cego – atuavam como forças coercitivas, repressoras, o que gerava, evidentemente, resistência em sentido contrário e mantinha permanentemente a massa, que devia submeter, em estado de revolta, iva ou não; O totalitarismo capitalista, ao contrário, não reprime nem coage – seduz. O algoritmo é o sonho molhado dos ditadores. Estes gostavam de pensar que seus ‘povos’ os amavam, embora sabedores que o apoio era, em grande parte, fruto de coerção e medo; já esses gestores, e suas carracas de proa – musks, bezos, zuckerbergs, et caterva – podem sentir-se como os ditadores de outrora, convictos de que seus aderentes não estão obrigados a nada, nem estão coagidos ou oprimidos. Estão, literalmente, seduzidos. São os protagonistas de sua própria vida, uma ilusão reforçada pela presença própria em redes sociais, tiktoks, kwais, etc. O Algoritmo está eliminando a necessidade da coerção, da repressão, que, segundo o Dr. Freud, estão na base da civilização. Agora todos concordamos em marchar, em formação, sob o jugo manso e o fardo leve das Big Techs, em direção ao paraíso. “E nossos filhos viverão, para ver esse mundo perfeito em que não haverá guerra ou fome, opressão ou violência – apenas uma imensa e ecumênica companhia corporativa, para quem todos os homens trabalharão em prol de um ganho comum, em que todos terão sua cota de ações, todas suas necessidades satisfeitas, todas suas ansiedades pacificadas, e todo tédio dissipado.” Paddy Chayefsky, 1976.

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